“INDRIYARTESHU VAIRAGYAM”
Indriya significa órgãos dos sentidos e artha, objecto. Vairagya vem de raga, paixão ou desejo, unido ao prefixo negativo vi que transforma o significado em desapego. Assim, Indriyartheshu vairagyam significa “um estado de desapego em relação aos objectos dos órgãos dos sentidos” ou “a ausência de uma compulsão pelos prazeres mundanos e posses”.
Raga, é mais do que apenas uma fantasia ou preferência, é o desejo ardente por alguma coisa. Quem está livre de tais desejos é chamado vairagi e seu bhava, estado mental, é chamado vairagyam, um desapego em relação aos objectos dos sentidos. Que significa desapego? Significa colocar uma barreira entre mim e os objectos dos sentidos? Eu deveria dar as costas, não olhar nem ouvir quando houvesse algo que me pudesse fascinar? Não. Desapego não é um estado interior de repressão. È um estado sereno da mente caracterizado pela total objectividade em relação às coisas do mundo, os objectos dos sentidos.
Desapego não é repressão do desejo. Desapego e auto-repressão são estados contraditórios da mente, porque são mutuamente exclusivos. A auto-repressão é estabelecida na presença da paixão, para que seja dominada ou esmagada. No desapego não existe nada que requeira repressão. Nenhum desejo compulsivo comanda a mente do vairagi.
Como pode a mente ser libertada dos desejos compulsivos? Como pode ser alcançada uma natureza de desapego? O desapego é obtido pela clareza em ver os objectos exactamente como eles são: vendo, sem uma distorção subjectiva, como os objectos se relacionam comigo, com minha felicidade e bem-estar.
Basicamente, um ser humano parece se considerar uma pessoa incompleta. Todos os meus desejos compulsivos giram em torno deste sentimento humano de estar sempre faltando algo. A experiência humana comum é a de querer ser uma pessoa completa e a de não se sentir completo na forma em que se encontra. Vendo-me como incompleto, insatisfeito, inadequado e inseguro, eu tento trazer um preenchimento para mim mesmo, através da busca do prazer e da aquisição de coisas. Dedico-me a duas buscas humanas fundamentais: a luta por kama e artha. Kama é a palavra sânscrita que significa todas as formas do sentido do prazer. Kama indica não apenas comer, mas comer como um gourmet, não somente beber, mas beber com um prazer compulsivo. Artha, representa todos os tipos de coisas que julgo que trarão segurança à minha vida: dinheiro, poder, influência, fama e nome.
Como ser humano, não haverá fim para o meu desejo e luta por artha e Kama enquanto me sentir inseguro e incompleto, achando que artha e Kama me podem completar e dar fim à minha insegurança. Enquanto eu achar que artha e kama tem esta capacidade, não serei capaz de obter indriyartheshu vairagyam, desapego pelos objectos. Para ficar livre de tal impulso por artha, coisas e kama, prazeres, eu devo, pela análise e discernimento, reconhecer que nem mesmo um sem número de coisas me pode tornar seguro, nem um grande prazer pode preencher o meu sentimento de vazio. Devo descobrir que a minha batalha para preencher a minha sensação de querer é sem fim. Nenhum acumulo de riqueza é bastante para silenciar a minha ansiedade interior, nenhum prazer suficiente para trazer um preenchimento duradouro.
Todo o ganho de coisas, de qualquer tipo de fortuna, também envolve perda. Nenhum ganho que obtiver através do esforço é absoluto. Todo e qualquer ganho envolve uma perda concomitante: uma perda pelo consumo de tempo e esforço requeridos, uma perda pela responsabilidade assumida, uma perda por qualquer outra alternativa abandonada. Ganho envolve perda. Um duradouro senso de segurança nunca é alcançado por artha.
Quando eu analiso o prazer, encontro o mesmo resultado. A luta humana por prazer não produz contentamento duradouro. (…) Momentos de prazer requerem a concomitante disponibilidade de três factores: disponibilidade do objecto do prazer, disponibilidade do instrumento apropriado e efectivo para apreciar o objecto; disposição mental apropriada para apreciar o objecto. Sendo dependentes destes factores sempre mutantes, momentos de prazer são ocasionais e passageiros. Objectos e instrumentos são limitados pelo tempo. A mente é caprichosa, sujeita a mudanças de humor e à descoberta da monotonia naquilo que era anteriormente desejado.
A análise do prazer mostra que este, assim como posses, falham no meu esforço para encontrar plenitude. (…) Vejo que objectos, buscados para o prazer ou segurança, não me podem dar o que basicamente procuro. Para o desapego este facto deve ser conhecido por mim. Objectos são úteis, mas nenhum deles me pode dar o que realmente desejo. Vejo que não posso achar segurança completa ou duradoura na riqueza, poder ou fama, nem posso encontrar plenitude duradoura em momentos de prazer acumulados.
Quando não deposito a minha segurança, o meu preenchimento, a minha felicidade nestas coisas, alcanço uma visão objectiva delas. Tornam-se somente objectos para mim, os quais posso avaliar pelo que são em vez de pelo que espero deles subjectivamente. Como simples objectos, em vez de se tornarem resposta às minhas necessidades mais profundas, eles assumem as suas reais dimensões. Deixo de lhes dar uma capacidade extra que na realidade eles não têm. Vejo dinheiro como dinheiro, não como uma garantia contra a insegurança. Vejo casa como casa, não como uma fonte de felicidade. Vejo a terra como a terra, não como uma extensão de mim mesmo pela posse.
Vejo todas as coisas como são e não lhes dou nenhum valor subjectivo extra. Quando os objectos são despojados dos valores subjectivos projectados neles por mim – valores que eles parecem ter quando os olho como uma fonte de felicidade – sou objectivo em relação a eles. Sou desapegado. Este é o estado mental de vairagya.
Vairagya é um valor importante, que deve ser entendido correctamente. (…) Vairagya é um estado mental ocasionado pela compreensão, não um estado mental forçado por um compromisso com a auto-negação ou privação. Vairagya não nasce do medo, nem do esforço da vontade, mas sim da pura compreensão. É produzido pela observação, pesquisa e análise sobre o que desejo, por que desejo e o que alcanço com o preenchimento desses desejos. A compreensão produzida por esta análise reduz o mundo a um facto objectivo para mim, liberta-o da confusão da minha própria subjectividade, do emaranhado das minhas ragas e dveshas, meus gostos e aversões que me prendem à felicidade momentânea.
É o meu valor subjectivo pelas coisas que transforma um simples objecto num objecto de valor especial, um objecto peculiarmente importante para mim. Torno-me apegado a tais objectos apenas porque me prendo a eles, não porque eles se prendam a mim. Nenhuma casa me prende, eu me prendo à casa por causa do valor subjectivo que projecto nela. Objectos não me pegam e prendem. Eu os prendo. A prisão está em mim mesmo, nos meus valores subjectivos baseados na incapacidade para compreender as limitações dos objectos, sua impossibilidade de me preencherem. Quando compreendo, a prisão desaparece e vejo as coisas como são. E este estado de ver é chamado indriyarthesthu vairagyam, desapego em relação aos objectos dos sentidos.
O valor dos Valores
Swami Dayananda Saraswati